“Passa o relógio, vagabundo”.
Era um relógio bonito, marca de respeito, que ele ganhou de presente fazia algum tempo, na época em que a vida era boa, antes de tudo aquilo desmoronar. Presente da mãe, um esforço guardando um dinheirinho todo mês para que ele tivesse um relógio apresentável, quando fosse procurar seu primeiro emprego. A mãe era do tempo em que um relógio bonito dava a um homem um empréstimo no banco. Ganhou no dia da formatura do curso técnico, agora seria alguém na vida e precisava se arrumar pro mundo, ela disse quando lhe entregou a caixinha de plástico vermelho enrolada em papel azulado.
Vinte anos o relógio sempre com ele. De vez em quando, precisava trocar a bateria e fazer uma limpeza. O vidro quebrou uma vez, a pulseira teve de ser emendada porque ele engordou uns quilos com a comida da fábrica. Passou um tempo guardado, quando não teve como consertar por causa de uma queda da mesa, o sobrinho tentando pegar.
No dia em que conheceu Juliana, estava com ele. Ela reparou naquele rapaz, na festa, que a paquerava e olhava insistentemente as horas. Depois soube que ele não estava preocupado, era charme pra ela ver o relógio. Fez amor com ela sem tirá-lo, ele sacudindo com o movimento do braço. O romance durou uns seis meses, e acabou porque ela foi sugerir que ele vendesse o relógio para comprar as alianças do noivado.
Perdeu o emprego depois de provocar um acidente na firma, um colega com a mão decepada e ele demitido por justa causa. A família do decepado quis matá-lo e ele teve de mudar de cidade. Fugindo, precisava de dinheiro para a passagem. Não quis vender o relógio, foi pedindo carona até chegar ao Acre. Viveu uns dois anos de bicos, passando fome algumas vezes, o relógio guardado com a irmã que ficou na casa dele, com recomendações fortes pra não vender. Ele até matava se o relógio sumisse – disse, dramático, na hora da fuga.
Voltou, enfim, para casa, depois que soube pela irmã que o decepado morreu de dengue e a família, desgostosa, mudou de cidade. Era um homem livre de novo, podia reconstruir a vida. Pediu o relógio e botou no conserto com o restinho do dinheiro que sobrou da viagem de volta.
Pois estava indo para casa quando, ao descer do ônibus, sentiu um troço duro nas costas e uma voz cavernosa no ouvido, “passa o relógio, meu”. Pensou na hora que não tinha nada de valor para trocar pelo relógio, a carteira vazia, só umas moedas no bolso da calça. Fez menção de tirar o relógio do pulso e, ao invés de entregar ao ladrão, fechou-o na mão, deu-lhe um soco e disparou pela calçada. O tiro o alcançou uns dez metros à frente e ele caiu perto do semáforo, a mão fechada. O ladrão correu, pisou a mão dele para abrir, pegou o relógio e sumiu por entre os carros.
Os policiais acharam suspeito o cara andrajoso com um relógio daqueles. Deram a batida. Um deles gostou do mostruário dourado e arrancou do braço pardo, “passa o relógio, vagabundo”. Uma coronhada nas costas, um chute na bunda, um empurrão e o relógio mudou de mãos outra vez.
São Luís – 05.02.11.
Prof. DSc. Marcos Fábio Belo Matos
Jornalista e Prof. Ufma-Imperatriz
(099) 8162-6314
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